Loading...

Mortalidade por coronavírus diminui com aprendizados e novas práticas médicas

Evolução rápida das técnicas foi responsável por redução de um terço da mortalidade pelo vírus do mundo, segundo relatório.

Um conjunto de aprendizados de várias áreas da saúde, que inclui diferentes doses de medicamentos e manejos de ventilação, além de técnicas não invasivas, tem contribuído para a queda da taxa de mortalidade de pacientes graves de Covid-19 internados em UTIs.

Relatório publicado na revista Anaesthesia no mês passado, com dados de 24 estudos com mais de 10 mil pacientes internados em UTIs da Ásia, Europa e América do Norte, aponta redução da ordem de um terço na mortalidade, entre março e maio (de 60% para 42%).

No Brasil, essa comparação das atuais taxas com as do início da pandemia ainda está sendo ajustada. Mas um projeto da Amib (Associação de Medicina Intensiva Brasileira) que reúne dados de quase 42 mil pacientes de 617 UTIs brasileiras mostrava, até o dia 12 de agosto, um índice de mortalidade de 35,4% —28,9% nas privadas e 50,7% nas públicas.

Para os especialistas, como os protocolos de cuidados intensivos dos pacientes são praticamente os mesmos, a alta taxa de mortalidade na rede pública é explicada, em grande parte, pelo perfil de pacientes, que têm mais comorbidades. Também pela falta de acesso, chegam em estado mais grave às UTIs.

No projeto da Amib, por exemplo, 42% dos pacientes públicos têm comorbidades, contra 33% dos privados. Também são mais graves, de acordo com escore Sofa (avaliação sequencial de falência orgânica, na sigla em inglês), que faz uma pontuação a partir de vários parâmetros do doente: os públicos têm 4,5, e os privados, 2,7. Quanto maior que 1, mais grave.

Ainda que a idade —as UTIs têm recebido pessoas mais jovens com Covid-19, com mais chances de recuperação do que os mais velhos—, possa contribuir para a redução de mortes, há um entendimento geral de que hoje os doentes estão mais bem cuidados.

“Toda doença tem uma curva de aprendizado, mas a da Covid foi impressionante e acelerada. Com uma UTI inteira com pacientes com a mesma doença, foi possível observar, aprender, fazer pesquisa”, afirma a médica intensivista Suzana Lobo, presidente da Amib.

Segundo ela, muitas práticas médicas foram revistas, como a indicação precoce de diálise aos pacientes com perda das funções renais.

“Hoje esse suporte é mais restrito. A gente tem segurança de esperar um pouco mais porque os dados mostram que a taxa de mortalidade é maior nesses pacientes. Muitos deles se recuperam sem diálise.”

Com a intubação, ocorreu algo semelhante. No início, na China, havia indicação de intubar precocemente os doentes graves que apresentassem queda da taxa de oxigenação.

Na Itália, a ventilação não invasiva foi eficaz para muitos casos que, teoricamente, precisavam de intubação, mas esbarram na falta de respiradores. “Os pacientes ganharam tempo para se recuperar e produzir anticorpos”, diz o médico Carlos Carvalho, chefe da pneumologia do InCor (Instituto do Coração).

No Brasil, os primeiros protocolos orientavam para a intubação precoce, mas os médicos foram ganhando segurança para adotar a ventilação não invasiva (máscaras com reservatórios de oxigênio).

“Com isso, prevenimos muita intubação, que está associada a um risco maior de mortalidade”, afirma Carvalho.

Segundo Suzana Lobo, a intubação traz riscos adicionais ao doente com Covid-19, como as infecções bacterianas. Adotada em 50% dos pacientes de UTIs públicas e 30% das privadas, a técnica chegou a ser usada em 90% dos pacientes na região da Lombardia, epicentro da pandemia na Itália.

“O paciente de Covid não se iguala a nenhum outro. Foi preciso reaprender o que tínhamos na literatura para melhor ventilar. São pacientes que perdem a saturação de forma abrupta. Chegam saturando 97, 98 e de repente caem para abaixo de 90”, explica João Marcus Perlira, fisioterapeuta intensivista do Hospital São Luiz Jabaquara.

A posição prona, em que o paciente é virado de barriga para baixo para melhorar a oxigenação pulmonar, teve o uso ampliado. Antes realizada apenas com o paciente sedado sob ventilação mecânica, hoje também é feita com ele consciente, evitando a intubação em muitos casos.

Os protocolos de sedação também passaram por mudanças. “A sedação excessiva, além de efeitos como queda da pressão, leva o paciente a ficar mais tempo no ventilador e a ter mais riscos de infecção”, afirma Lobo.

A redução nos níveis de ventilação foi outro aprendizado. No início, pensava-se que o pulmão do paciente com Covid-19 era “mais duro” e precisava de altas pressões no ventilador para abri-lo.

“Mas são muito poucos [os pulmões] nessa condição. Percebemos que a ventilação excessiva levava a um pneumotórax, um ferimento no pulmão em que entra ar e lesa mais o órgão. Essa manobra mais prejudicava do que ajudava. Quando parou de ser feita, com certeza melhorou os resultados”, diz a médica intensivista.

Diferentes dosagens de medicações conhecidas nas UTIs, como a dexametasona (corticoide) e a heparina (anticoagulante), também ajudaram.

“Não temos bala de prata, mas passamos a fazer um uso mais padronizado dessas medicações. Como sabemos que 30% dos pacientes podem fazer trombose, as UTIs passaram a usar doses maiores de heparina e a procurar precocemente os sinais.”

Novos conhecimentos chegaram por meio de autópsias realizadas em São Paulo, como a revelação de que muitos pacientes tinham no pulmão focos de infecção bacteriana, além da Covid-19. “Isso nos levou a usar como rotina antibióticos de amplo espectro para ajudar na recuperação”, diz Carvalho.

O InCor tem transmitido esses conhecimentos a 19 hospitais públicos da rede estadual paulista por meio de um projeto de teleUTI criado a partir da UTI respiratória do instituto.

“Orientamos na aplicação dos protocolos e discutimos os casos mais graves de Covid nesses diferentes hospitais”, afirma o pneumologista. Há uma proposta de tornar permanente essa ferramenta de orientação a distância.

Para o fisioterapeuta Perlira, ainda há muito o que fazer para que o aprendizado chegue às regiões mais remotas. “Os profissionais buscam informações, mas elas chegam de forma lenta e fragmentada.”

Se esses conhecimentos existissem em março, mês em que o país registrou o primeiro óbito por Covid, teria sido possível evitar tantas mortes?

“Provavelmente sim. No início, podemos ter perdido pacientes porque as práticas que usamos hoje ainda não eram conhecidas”, diz Carvalho.

Vários hospitais no país têm criado grupos para avaliar o impacto dos diferentes tratamentos da Covid-19. O Hospital Marcelino Champagnat, de Curitiba (PR), é um deles.

Coordenadora do grupo, a fisioterapeuta Cristina Baena afirma que ainda não é possível dizer se os conhecimentos de hoje teriam salvado vidas no início da pandemia. “Mas não tenho dúvidas de que o sofrimento teria sido menor.”

Uma das primeiras conclusões da equipe foi que a doença guardava muito mais diferenças do que semelhanças com a gripe H1N1, última pandemia enfrentada pelo mundo antes do novo coronavírus.

“A porta de entrada é o pulmão, mas ela se torna sistêmica. O vírus cai na corrente sanguínea e faz outros efeitos e isso abre uma porta grande de novas descobertas”, aponta a cirurgiã Anna Miggiolaro.

A cardiologista Camila Hartmann acompanha casos de lesões cardíacas que deixaram sequelas nos pacientes, como quadros de arritmia e disfunções no músculo cardíaco.

“No começo, a gente teve que se mobilizar rapidamente para aprender a tratar a doença aguda. Com a experiência, montamos protocolos e agora já temos pacientes sendo acompanhados”, observa.

A Covid-19 demanda a atenção de várias áreas médicas, como a nefrologia. Além de quadros de insuficiência renal causados pela internação em UTIs—atingindo até 30% dos casos—, 10% dos infectados desenvolveram problema no sistema e precisarão de tratamentos, como hemodiálise.

“Se bem conduzidos no começo, conseguem diminuir a chance de complicações”, afirma Rafael Weissheimer, especialista da área que hoje estuda amostras de rins de pacientes que morreram. Com o consentimento de familiares, o hospital também coleta materiais no pulmão e coração para pesquisa.

Camila Hartmann conta que mudou até mesmo a angústia da equipe pela melhora de pacientes com a Covid-19 que chegam a três semanas de internação na UTI. “Agora a gente entende que a doença tem um tempo e que a gente tem que dar um suporte adequado ao paciente nesse tempo.”​

O QUE MUDOU NO CUIDADO DO PACIENTE DE COVID-19 NA UTI

Diálise A diálise era feita mais precocemente no paciente com perda renal. Esse suporte teve o uso mais restrito porque pode agravar o quadro do doente e aumentar a taxa de mortalidade

Intubação Muitos pacientes graves são tratados hoje sem intubação, com ventilação menos invasiva, como máscaras com reservatório de oxigênio. Intubar traz riscos adicionais, como as infecções bacterianas

Ventilação Eram feitas manobras com altas pressões no ventilador para ‘abrir’ o pulmão do paciente com Covid-19. Hoje isso é reservado a poucos casos, porque a ventilação excessiva pode causar danos ao órgão

Sedativos No início, os protocolos que evitavam uma sedação mais profunda foram abandonados. Com o tempo, foram retomados porque, além dos efeitos colaterais, levam o paciente a ficar mais tempo no ventilador

Pronação Antes, a técnica de virar o paciente de bruços para melhorar a oxigenação pulmonar era pouco usada e, em geral, indicada apenas aos pacientes intubados. Hoje é usada em doentes conscientes, evitando a intubação em muitos casos

Medicações O uso mais padronizado de medicamentos, como corticoides e anticoagulantes, além de antibióticos de amplo espectro para combater infecções, também contribuiu para a redução de mortes

Equipe multidisciplinar Por ser uma doença multissistêmica, que ataca órgãos como pulmão, coração, rins e cérebro, o paciente grave de Covid-19 precisa de vários especialistas para cuidar das complicações

Nutrição Pacientes graves de Covid-19 chegam a perder 400 gramas de peso por dia, mesmo com terapia nutricional. Além do nutricionista, precisam de tratamento fonoaudiológico para recuperar a fala e a deglutição, e de fisioterapia, para os movimentos.

Fontes: Suzana Lobo, médica intensivista, Carlos Carvalho, pneumologista, e João Marcus Perlira, fisioterapeuta

Fonte: Folha de São Paulo

Mortalidade por coronavírus diminui com aprendizados e novas práticas médicas - D'Olhos Hospital Dia