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O pós-covid-19

Gonzalo Vecina *, O Estado de S.Paulo

27 de abril de 2020 | 05h00

Uma fila de caminhões do Exército que não carregam soldados. Carregam corpos, vítimas da covid-19. O que aconteceu no norte da Itália para uma cena como essa ocorrer? Não é possível explicar essa calamidade em poucas palavras, mas ocorreu uma combinação de três eventos.

O primeiro foi a ganância de empresários que resistiram em paralisar suas atividades comerciais.  A questão da mobilidade social foi a característica mais relevante para explicar a epidemia e sua virulência. E os testemunhos desta tragédia comprovam essa verdade.

O segundo foi a presença de políticos populistas que entregaram o bem-estar de seus cidadãos e aceitaram a pressão dos empresários para não propor o isolamento social. É triste ver a tentativa do pedido de desculpas do prefeito de Milão pela morte de seus concidadãos, prova que o Estado falhou em proteger a vida daqueles a quem deveria estar a serviço.

O terceiro evento é o elemento estruturante da crise. Vem sendo urdido nos últimos 15 ou 20 anos. Tratou-se de diminuir a importância do Estado na gestão da sociedade e entregar ao mercado a tarefa de definir o que é, e como se constrói bem estar social. A voragem financeira varreu o velho mundo e agora cobra seu preço. Os países europeus estavam despreparados para enfrentar uma crise como a gerada pelo coronavírus. Nesse período, o mercado foi determinando onde e como o Estado deveria operar e, quando a emergência sanitária ocorreu, os sistemas de saúde estavam debilitados. Poucos leitos, defasagem tecnológica, cadeias produtivas transferidas para outros países, despreparo e suas consequências – sofrimento, dor e morte.

Em todos esses países hoje se cortejam os heróis da epidemia, os trabalhadores da saúde que se sacrificaram e correram muitos riscos. E agora, ainda balbuciando, buscam construir o momento de recuperar a importância do setor da saúde como um impulsionador civilizatório. Não somente um peso para o necessário equilíbrio fiscal.

Se isso ocorreu na Europa civilizada, no 3º mundo, no Brasil, onde nos últimos anos vive-se sobre a égide da EC-95, tristemente chamada de EC(emenda constitucional) do fim do mundo, as condições são piores. A epidemia está em seu curso e no meio de muita turbulência política, o Sistema Único de Saúde (SUS) e seus operários salvam vidas.

Mas a epidemia passará e que Estado surgirá? Será o dos neoliberais que negam sua presença como um estorvo que prejudica o espírito animal dos empreendedores tão necessários para o progresso ou o dos keinesianos, hoje retraídos que miram um modelo mais civilizado de sociedade e da participação do Estado na estruturação da sociedade?

Essa é uma decisão da sociedade por meio de seus representantes dentro do estado de direito que deve continuar vigente e que sai desta crise com muitas ameaças.

Uma sociedade moderna não deve ser isto ou aquilo. Não pode ser economia ou saúde. Tem de ser tudo dentro da complexidade que a contemporaneidade exige. São necessários os empreendedores e o uso racional das imensas riquezas naturais deste País. É necessário apoiar a ciência que é geradora contínua de conhecimentos que transformam a vida. Mas tudo isso tem de ocorrer em um ambiente em que grupos de risco social sejam acolhidos, em que se diminuam as desigualdades, em que os mercados sejam regulados pelo Estado para que o bem comum não se transforme em seu pasto. E tudo isso tem de ocorrer dentro de um ordenamento político democrático.

Esse é o mundo pós-covid-19. Será o pós normal do futuro construído pelos brasileiros!

* É médico sanitarista

 

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